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1.2. Combater a precariedade e as novas formas de exploração

Uma governação que responda pelo país tem a obrigação de colocar o emprego no centro da ação política e de responder às transformações em curso no mundo do trabalho. Isso faz-se com políticas capazes de criar e distribuir o emprego, qualificando o país, reduzindo o horário de trabalho e combatendo as múltiplas formas de desregulação e prolongamento dos horários e de trabalho não pago. Portugal continua a ser um país precário: cerca de um quarto da população com contratos precários, dois terços da juventude trabalhadora sem contrato permanente e centenas de milhares que trabalham sem contrato (na informalidade absoluta ou com falsos recibos verdes). Os baixos salários condenam as pessoas a vidas no limiar da pobreza e os vínculos temporários impedem-nas de fazer projetos para o futuro.

A contratação coletiva e a pandemia: um problema de abrangência e de conteúdos

O número de trabalhadores cobertos pelas convenções coletivas publicadas em 2020 estava abaixo dos 500 mil. O aumento regular do salário mínimo deu um impulso à atualização da contratação coletiva sobretudo em setores em que as remunerações das categorias inferiores da escala salarial coincidiam com o salário mínimo – setores tipicamente com um elevado número de trabalhadores e trabalhadoras – o que concorreu para o aumento da cobertura potencial das convenções coletivas. Por outro lado, a legislação de 2017, facilitando a extensão das convenções coletivas, e o aumento claro das portarias de extensão emitidas em 2017 e 2018 tiveram impacto na aproximação da cobertura potencial e real. Só que a pandemia parece ter voltado a paralisar a negociação coletiva, com uma redução substancial em 2020. A abrangência das convenções coletivas publicadas está muito longe dos níveis de 2008, altura em que cobria 1,9 milhões de contratos de trabalho. Enfrentar este problema é uma prioridade.

Gráfico 4 / Trabalhadores por conta de outrem potencialmente abrangidos por convenções coletivas

Fonte: Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS/Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT).

O facto de as convenções serem negociadas sob chantagem patronal, não apenas pela caducidade (entretanto suspensa temporariamente através de uma moratória) mas pela inexistência do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, puxa os direitos para baixo. A flexibilidade do tempo de trabalho e os bancos de horas são um foco da pressão patronal acrescida na negociação coletiva. O mote está dado ao permitir-se que as convenções tenham disposições inferiores à lei geral, nomeadamente sobre as formas de organizar o trabalho e os seus tempos. O desequilíbrio é hoje a regra nas relações coletivas de trabalho. A lei deveria, contudo, servir exatamente para impedi-lo.

Às formas clássicas de precariedade (contratos a termo, trabalho temporário, estágios, falsos recibos verdes), junta-se a generalização, em vários setores, do recurso ao outsourcing e à externalização e a introdução do modelo das “plataformas”. O trabalho através das plataformas tem vindo a operar uma transformação de grande significado nos modos de organizar a prestação de trabalho, através da automação, da conectividade permanente, do acesso digital aos clientes e da gestão algorítmica. É um “modelo de negócio” que pode ser utilizado em múltiplos sectores, do transporte de passageiros às entregas, ou à montagem de móveis. O debate sobre o enquadramento do trabalho através de plataformas digitais tem ocorrido em todo o mundo, dando origem a intervenções de natureza muito diferente, seja pelas autoridades locais, seja através de contratação coletiva, seja por parte dos tribunais (com decisões que criam jurisprudência, nomeadamente relativamente à qualificação da relação contratual), seja por via de leis gerais aplicáveis a uma parte das plataformas (como as de transportes ou de entregas), ou ao conjunto dos trabalhadores que prestam atividade através de plataformas digitais.

Em Portugal, calcula-se que mais de 10% da população adulta já prestou algum serviço a partir de uma plataforma digital e entre 2 a 4% dos trabalhadores tinha nas plataformas digitais a sua principal (ou única) fonte de rendimento. O país foi tristemente pioneiro na aprovação, pelo PS, PSD e CDS, da “Lei Uber”, que consagrou um modelo de intermediários, impedindo a celebração de contrato entre trabalhadores e plataformas digitais. Mais recentemente, o Bloco apresentou um projeto de lei para a criação de um contrato de trabalho por conta de outrem com as plataformas digitais, obrigando à inclusão dos trabalhadores de plataforma no Código de Trabalho, garantindo proteção social e eliminando as figuras do intermediário. Esse passo terá de ser dado.

Por outro lado, a precarização faz-se através do recurso aos despedimentos e ao outsourcing. Em 2021, a vaga de despedimentos em grandes empresas e bancos não teve a ver com dificuldades económicas, mas sim com o aproveitamento do contexto pandémico para substituir milhares de postos de trabalho enquadrados por acordos de empresa, contratação coletiva e direito a uma carreira, por outros ocupados por trabalhadores externos, em outsourcing, precários, fora dos instrumentos de contratação coletiva e com salários mais baixos. Ao mesmo tempo que estas empresas perseguem trabalhadores com muitos anos de casa, cresce o número dos outsourcings. Na Altice, a contratação recente de centenas de trabalhadores para a Intelcia é um exemplo dessa estratégia. No Santander, há hoje mais trabalho e o banco socorre-se de empresas de trabalho temporário para colmatar os lugares que extingue, incluindo funções permanentes e essenciais. Esta manobra apoia-se nas alterações que tornaram os despedimentos muito mais baratos, apoia-se na norma de amordaçamento dos trabalhadores que os impede de, uma vez recebida a compensação, exercerem o direito legal de contestarem um despedimento ilícito e é ainda facilitada pela passividade das autoridades.

35 horas no privado, dever de desconexão e semana de 4 dias?

A experiência portuguesa e internacional relativa à redução do horário de trabalho faculta-nos conhecimento suficiente para perceber que esta é uma medida possível e dá-nos indicações sobre como conduzir um processo deste tipo. Se tomássemos como referência a experiência francesa de 1998, a aplicação das 35 horas no setor privado em Portugal poderia criar mais de 200 mil postos de trabalho. É sensato e tem de ser feito: mais emprego e mais tempo para viver.

Em Portugal, a redução para as 40 horas, em 1996, permitiu a criação de 5% de emprego líquido no primeiro ano e 3% no segundo. Em França, a aplicação das leis Aubry (a primeira de 1998 e a segunda de 2000) que reduziram o horário de trabalho paras as 35 horas, foi objeto, em 2014, de uma “Comissão de Inquérito sobre o impacto societal, social, económico e financeiro da redução progressiva do tempo de trabalho”. Essa Comissão conclui que a redução do tempo de trabalho decidida pela lei de 1998 contribuiu para que a economia francesa criasse 350 mil empregos entre 1997-2001, que ela foi acompanhada de uma aceleração dos ganhos de produtividade e que permitiu o relançamento do diálogo social e uma melhoria na articulação entre o tempo passado no trabalho e o tempo consagrado a atividades pessoais, familiares e associativas.

Nalguns países, tem vindo a ser testado o modelo de uma semana de 4 dias, reorganizando-se os tempos de trabalho e os tempos sociais. Vários modelos têm estado em cima da mesa, mas uma hipótese é a combinação entre a redução do horário semanal para 35 horas e a sua concentração em 4 dias da semana, libertando assim três dias para descanso. No Estado Espanhol decorre um projeto piloto para apoiar empresas que adiram à semana das 32 horas, concentradas em 4 dias.

A limitação da jornada de trabalho faz-se também combatendo os abusos nas horas extra (muitas delas não pagas), o abuso da figura legal da “isenção de horário” (cada vez mais frequente e com uma utilização muitas vezes fraudulenta por parte das empresas) e da “laboração contínua” (cujos critérios são totalmente permissivos). São ainda necessários sinais fortes, como o que foi dado com a consagração do dever patronal de desconexão, uma proposta que o Bloco vinha defendendo desde 2017 e que ficou consagrada no Código do Trabalho no final de 2021, suscitando grande interesse internacional. Trata-se de uma disposição original por colocar o ónus da desconexão no patrão e na empresa e não no trabalhador, ao contrário das propostas relativas ao “direito a desligar” noutros países. E é uma norma que vale para todos os trabalhadores: fora do horário de trabalho, é tempo de descanso e a esse tempo de descanso corresponde um dever de abstenção de contactos por parte da empresa, sob pena de serem aplicadas contra-ordenações graves. É uma lei para contrariar uma verdadeira cultura de “ligação e disponibilidade permanente” que existe em alguns setores da economia.

As proposta do Bloco:

  • Relançamento da contratação coletiva e do sistema coletivo de relações laborais, garantindo o fim da caducidade unilateral dos instrumentos de regulação coletiva de trabalho, a reposição do tratamento mais favorável ao trabalhador (para impedir que os contratos coletivos tenham normas piores que as da lei geral) e o alargamento dos mecanismos de arbitragem;

  • Redução do horário de trabalho para as 35 horas e abertura à possibilidade da semana de 4 dias;

  • Combate à desregulação dos horários, com reposição do pagamento integral das horas extra (eliminando o corte da troika), limitação e regulação da utilização da figura da “isenção de horário” e da generalização da laboração contínua;

  • Revogação do alargamento do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração, restrição da utilização dos contratos a prazo apenas às situações de substituição temporária e de pico ou sazonalidade de atividade e eliminação das exceções legais que permitem a sucessão de contratos a termo;

  • Regularização dos falsos recibos verdes, com metas concretas para obrigar à celebração de contrato a dezenas de milhares de trabalhadores utilizando a Ação Especial de Reconhecimento do Contrato de Trabalho (a “Lei contra a Precariedade”) e com a inclusão de um critério de exclusão de empresas com falsos recibos verdes em qualquer contrato com o Estado;

  • Reforço da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), com a contratação de mais meios (não apenas na inspeção, mas também como técnicos superiores), dando-lhe mais poderes (designadamente conferindo título executivo a algumas das suas decisões), e garantindo o cruzamento de dados entre Autoridade Tributária e ACT;

  • Aprovação de uma nova lei de combate ao trabalho temporário e ao falso outsourcing, designadamente através de: i) limitação dos fundamentos e da duração do trabalho temporário a um máximo de seis meses; ii) obrigação de vinculação à empresa utilizadora ao fim de seis meses; iii) aplicação das regras e convenções coletivas da empresa aos trabalhadores e às trabalhadoras em outsourcing; iv) possibilidade de quem está em outsourcing optar por ser representado pelas organizações da empresa utilizadora (nomeadamente poderem eleger e ser eleitos para as Comissões de Trabalhadores); v) proibição de empresa que extingue posto de trabalho contratar em outsourcing para funções equivalentes; vi) proibição de externalização de funções relativas ao objeto social central da empresa;

  • Remoção das medidas da troika da lei laboral: i) devolução dos três dias de férias retirados pela direita (regresso à norma dos 25 dias, sem depender de outro critério); ii) reposição dos valores do trabalho suplementar e do descanso compensatório; iv) reposição do valor das compensações por despedimento e das regras anteriores à intervenção da troika, instituindo o princípio geral de um mês/por cada ano de trabalho prestado (neste momento, está em 12 dias);

  • Combater os despedimentos. Além da retoma das compensações: i) impedindo despedimentos, exceto por justa causa, em empresas com resultados positivos no ano anterior; ii) eliminando o despedimento por inadaptação, que dá origem a abusos sistemáticos; iii) revogando a norma que impõe que o recebimento da compensação do trabalhador vale como presunção de que ele aceita o despedimento e não pode contestar a sua licitude;

  • Reconhecimento de mais direitos a quem trabalha por turnos, nomeadamente através de: i) consagração legal da obrigatoriedade de subsídio por turnos; ii) maior acompanhamento médico; iii) definição de pausas e tempos de descanso e fins de semana; iv) participação dos trabalhadores e das trabalhadoras na definição das escalas de turnos; v) redução dos tempos de trabalho; vi) majoração dos dias de férias; vii) direito à reforma antecipada em proporção do tempo que se trabalhou por turnos;

  • Reconhecer e enquadrar no Código do Trabalho o trabalho doméstico assalariado e o trabalho profissional associado aos cuidados (apoio domiciliário, amas de creche familiar, ajudantes familiares), pondo fim à discriminação que a lei estabelece e garantindo a mesma proteção social de que gozam todos os trabalhadores por conta de outrem;

  • Alargar os direitos de parentalidade (licença inicial do pai, aumento da licença partilhada, redução de horário nos primeiros 3 anos de vida da criança), e dos direitos de pais e mães de filhos com deficiência, doença crónica ou oncológica e para acompanhamento de pessoa dependente (licenças para os e as cuidadoras informais);

  • Aumentar a percentagem do pagamento do Subsídio de Doença para garantir rendimentos substitutivos dos rendimentos do trabalho no período em que os trabalhadores se encontram doentes;

  • Obrigar à celebração de contratos entre trabalhadores e plataformas digitais, sempre que se verifiquem os indícios de laboralidade adaptados ao trabalho em plataforma, eliminando também a figura do intermediário, que foi consagrada pela “Lei Uber”;

  • Limitação da utilização abusiva de estágios apoiados pelo IEFP, valorização da sua remuneração e criação da obrigação, pelas empresas, de integrar pelo menos um em cada três estagiários. Reforço da fiscalização relativa aos falsos estágios e à utilização de estágios sucessivos para ocupar funções permanentes nas empresas.

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