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10.1. Uma banca pública estratégica

A transformação de um modelo económico que alia a financeirização às desigualdades e à destruição ambiental requer o controlo democrático do sistema financeiro. Para isso, a propriedade pública é condição essencial, mas não suficiente. Ao controlo acionista dos bancos devem corresponder uma estratégia económica clara para o desenvolvimento do país e uma gestão profissional, limpa e transparente.

A fragilidade do atual modelo ficou exposta com a crise e a derrocada de todos os grandes negócios alavancados em dívida no pressuposto de uma eterna valorização dos ativos financeiros. Para além da destruição de tecido empresarial das PME, muito dependente da procura interna atacada pela austeridade, os bancos foram obrigados a registar nos seus balanços milhares de milhões de euros de perdas associadas a créditos especulativos. As imparidades foram, em parte, pagas com fundos públicos. Depois de várias transferências a fundo perdido no BPN, BPP e no Banif, o sistema bancário foi financiado pelo Fundo de Resolução que, por sua vez, foi financiado pelo Estado, direta e indiretamente (além do contributo da CGD, as contribuições obrigatórias das outras instituições bancárias são receitas do Estado).

Desde 2008, o Estado colocou-se assim numa situação de financiador de última instância do capital dos bancos, tendo, no entanto, abdicado dos seus direitos de gestão e propriedade. Estas opções desastrosas resultaram também, em larga medida, de pressões europeias, como foi visível na decisão de venda do Novo Banco ao fundo norte-americano Lone Star: o Estado ficou com 25% do capital, e 75% da responsabilidade sobre as perdas futuras e tendo ainda abdicado de participar na administração.

O erro da privatização do Novo Banco

Em 2017, o governo do PS vendeu 75% do Novo Banco ao fundo Lone Star, abdicando de ter uma posição na gestão do banco. No âmbito desse contrato de venda foi criada uma garantia de 3900 milhões de euros, que seria acionada pela combinação de dois mecanismos: as perdas associadas a uma carteira de ativos “tóxicos” e as necessidades de capital do banco. Nos seus atos de gestão corrente, a administração do Novo Banco (ao serviço da Lone Star) interfere em ambas as dimensões, pelo que a venda criou uma situação de conflito de interesses. Ainda que existam alguns mecanismos de verificação, no caso da gestão da carteira de ativos diretamente coberta pela garantia, o mesmo não se verifica para os restantes atos de gestão do banco. Assim, uma vez registadas as perdas associadas aquela carteira (4.367 M€ em termos acumulados em 2020), a injeção no Novo Banco pelo Fundo de Resolução foi determinada pelas necessidades de capital do banco, que podem ser manipuladas pelas mais variadas escolhas de gestão. 

Gráfico 17

Fonte: Fundo de Resolução

O potencial de abuso criado por este contrato é confirmado pelos litígios entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco relativamente a verbas indevidamente imputadas à garantia pública. Aos escândalos da alienação de carteiras de imóveis por valores simbólicos ou da incapacidade de cobrança a grandes devedores, soma-se agora a certeza de que o Estado não garantiu os mecanismos para defender os seus interesses no caso do Novo Banco. Depois de praticamente esgotada a garantia pública, o banco volta agora aos lucros, antecipando-se a sua venda a um outro fundo internacional.

A privatização do Novo Banco foi um erro que o Bloco de Esquerda procurou evitar desde o primeiro momento, ao defender que a utilização de recursos públicos deveria ser acompanhada da propriedade do banco. Essa posição permanece válida e justifica a intervenção para recuperar o controle público do banco, tal como proposto neste programa. 

Não foi apenas no Novo Banco. Os casos recentes do Banif e mesmo da Caixa Geral de Depósitos deixam claro que as instituições europeias têm promovido ativamente um quadro legal que retira soberania aos Estados nacionais com o objetivo de promover a privatização e concentração das instituições bancárias a nível internacional.  

As novas regras europeias de resolução bancária, conjugadas com o regime das ajudas de Estado, transferiram para o BCE e para a Direção de Concorrência da Comissão Europeia as decisões estratégicas sobre a banca nacional: o momento da intervenção, a sua forma (liquidação ou resolução) e o destino privado do banco de transição. Além disso, em Portugal, da aplicação destas regras resultou, não apenas a entrega do sistema bancários aos interesses de curto prazo dos seus acionistas, mas também o controlo de 61% da banca nacional por acionistas estrangeiros, em particular por fundos de investimento, cuja submissão à lei nacional é mais difícil. No caso do setor segurador, depois da venda da Fidelidade e da Tranquilidade, 86% do capital é estrangeiro.  

Esta opção é errada. Por um lado, já ficou claro que a banca é um bem público e um setor estratégico demasiado importante para ser gerido de acordo com os interesses financeiros dos acionistas privados. Uma política industrial orientada para o emprego e para a conversão energética precisa de instrumentos financeiros democraticamente controlados e geridos. Esta conclusão é ainda mais grave se a banca for dominada por fundos de investimento estrangeiros sem ligação ao tecido empresarial português, nem vocação para uma gestão de longo-prazo e muito expostos aos riscos dos mercados internacionais.

A propriedade pública é, assim, uma condição essencial para a transformação do sistema bancário num fator de desenvolvimento da economia e não de acumulação de desequilíbrios macroeconómicos. É por esta razão que o Bloco de Esquerda defende o controlo público do sistema bancário e a sua recuperação como serviço público. Para prevenir formas de instrumentalização da banca pública por interesses particulares, é necessário garantir objetivos estratégicos claros e democraticamente discutidos, padrões de excelência a nível comportamental e prudencial e regras firmes de fiscalização e transparência.

Para além da questão principal do controlo público da banca, o país depara-se também agora com a fatura da crise, agravada por anos de gestão ruinosa dos bancos. De acordo com o Banco de Portugal, no pais e entre 2007 e 2018 foram disponibilizados aos bancos portugueses 23.800 M€ milhões em fundos públicos. Esta soma contabiliza valores entretanto devolvidos, bem como uma parte das dívidas dos bancos ao Estado através do Fundo de Resolução, que entretanto atingiu o valor de 4682 M€, mas exclui outras formas de apoio. Entre elas estão garantias públicas e, em particular, os ativos por impostos diferidos, criados ao abrigo do regime especial de 2014, que constituem verdadeiras ajudas de Estado à banca.

As contas do Fundo de Resolução

Para além do financiamento a fundo perdido ao BPN, no valor de 4915 M€, vendido ao BIC por 40 M€, e do BANIF, no valor de 2866 M€, vendido ao Santander por 150 M€, os bancos do sistema devem ainda ao Estado, por via do Fundo de Resolução, 6383 M€ por conta das resoluções do BES e do Banif e da venda do Novo Banco.

Tabela 8

Fonte: Fundo de Resolução

Independentemente do acordo de pagamentos entre o Fundo de Resolução e o Estado, o Fundo de Resolução é financiado através de:

  1. contribuição periódica criada em 2013, com uma receita de 72 M€ em 2020
  2. contribuição extraordinária sobre o setor bancário, com uma receita de 178 M€ em 2020.

Ambas as contribuições, suportadas pelas instituições financeiras em Portugal, constituem receita do Estado. Em particular, a contribuição extraordinária sobre o setor bancário tem natureza de receita tributária, apesar de ser depois direcionada para o Fundo de Resolução. Por outro lado, uma vez que o Fundo de Resolução integra o perímetro das administrações públicas, as operações de injeção de capital nos bancos pelo Fundo de Resolução entram para o cálculo do défice.

Em suma, o Fundo de Resolução constituiu-se como um mecanismo indireto de intervenção do Estado na banca. As suas necessidades de financiamento são, na realidade, necessidades de financiamento do Estado. Para credibilizar a narrativa de que a banca um dia pagará este empréstimo, a contribuição sobre o setor bancário – que é receita geral do Estado – é desviada para o Fundo de Resolução. Sem esta, o capital em dívida nunca seria pago dentro do prazo estabelecido.

A imaginação criativa para cobrar aos contribuintes a conta dos bancos

Aos gastos associados ao Fundo de Resolução acresce a dimensão dos Ativos por Impostos Diferidos (AID). Os AID são ativos que surgem pelo facto de existirem regras diferentes para a admissão de perdas por imparidade na contabilidade e na fiscalidade, sendo mais estritas nesta última. Em teoria, a diferença entre estes dois registos leva ao pagamento de um IRC superior no ano em que a perda se verifica, constituindo-se um AID que posteriormente poderá ser deduzido no ano da aceitação fiscal do registo da imparidade (ou nos 5 anos seguintes, em caso de prejuízo fiscal). Com a crise financeira, o registo de imparidades disparou levando a um crescimento explosivo do stock de AID, que se tornou uma parte substancial dos ativos e que foi registado como capital dos bancos em Portugal. 

Em 2014, a regulação bancária constatou que, dado o enorme valor de AID existente nalguns bancos e a perspetiva negativa de lucros no médio prazo, não seria viável “escoar” o stock de AID e, por conseguinte, aqueles valores poderiam não ser recuperados pelos bancos. Assim, os AID deixariam de contar para os rácios de capital dos bancos, colocando vários deles em situação de insuficiência de capital. 

Para resolver o problema, o governo PSD/CDS conferiu a estes AID direitos especiais que os aproximam, de facto, de capital garantido pelo Estado. Daí o nome de AID elegíveis.

Os AID elegíveis  podem: a) ser descontados perpetuamente: só deduzem ao apuramento do lucro fiscal se este for positivo, de outra forma transitam para o ano seguinte, por oposição à obrigatoriedade dos AID anteriores de entrar para o apuramento do lucro (ou prejuízo) fiscal no ano em que são reconhecidos fiscalmente; b) ser “reclamados” ao Estado: em caso de prejuízo, a instituição pode pedir ao Estado a devolução de AID, num montante equivalente à relação entre o resultado desse ano e os capitais próprios; c) ser “reclamados” ao Estado num processo de liquidação do banco.

Em 2016 este regime foi revogado mas até então os bancos já tinham registado milhares de milhões de imparidades. Não pagaram IRC porque apresentaram prejuízo, mas mesmo assim guardaram o direito de deduzir essas perdas nos seus impostos futuros – para sempre. Em 2018, mantinham-se no balanço dos bancos cerca de 3800 M€ de AID elegíveis. Em 2020, os seis maiores bancos do sistema reportavam 3000 M€ que serão utilizados para pedir reembolsos ao Estado ou para deduzir a impostos sobre lucros futuros. São, na verdade, ajudas do Estado ao capital destas instituições.

Os bancos que mantiveram prejuízos ao longo destes anos puderam pedir esse dinheiro ao Estado, ficando este com direitos de conversão no seu capital, que pode exercer ou vender depois ao próprio banco. Até 30 de junho de 2020 foram apresentados 19 pedidos de conversão por impostos diferidos em créditos tributários, no montante total de 1.131 M€ por seis bancos: CGD, Novo Banco, Efisa, Haitong Bank, Banif Banco de Investimentos (Bison Banco de Investimentos) e Banif (SA).

Tabela 9

Fonte: Relatórios e Contas dos bancos.

Dos pedidos, os montantes certificados pela Inspeção Tributária e convertidos em créditos fiscais correspondem a:

Tabela 10

Fonte: Relatórios e Contas dos bancos.

O Estado como acionista do Novo banco

O Novo Banco recebeu do Estado 253 M€ em injeções de capital por conta de ativos por impostos diferidos referentes ao período entre 2015 e 2017, tendo pedidos pendentes relativos aos anos subsequentes. O Fundo de Resolução, como acionista do Novo Banco, dispõe de três anos para se pronunciar quanto ao direito de adquirir estes direitos de conversão atribuídos ao Estado. Este prazo termina em 2022 (para os direitos com referência aos períodos de 2015 e 2016) e em 2023 (para os direitos com referência a 2017). Caso não o faça, o Estado ficará com uma participação de 5,69% no Novo Banco que, no entanto, apenas diluirá a posição do Fundo de Resolução no banco, mas não a do acionista Lone Star. Esta disposição, altamente lesiva dos interesses do Estado, foi aceite pelo governo no processo de privatização do Novo Banco. Apesar disso, uma vez realizadas as injeções de capital com recursos públicos, o governo deve exercer o seu direito de conversão, tornando-se acionista do banco e titular de uma parte dos lucros garantidos pela limpeza do balanço com recurso a uma garantia, também ela, pública. 

As propostas do Bloco:

  • Criação de instrumentos de reforço da propriedade e intervenção públicas no sistema bancário, através de:

    • Conversão dos AID elegíveis em capital e conversão das dívidas ao Fundo de Resolução em instrumentos convertíveis em capital, de forma a dotar o Estado de direitos de propriedade e gestão executiva na proporção dos montantes e riscos assumidos com o financiamento do sistema bancário;
    • Revisão das leis de resolução bancária, retomando o Estado poderes soberanos sobre decisões relativas à intervenção de bancos em situação financeira insustentável. Para além das hipóteses de liquidação e resolução, deve ser previsto o controlo público correspondente ao capital financiado pelo Estado, direta ou indiretamente (através do Fundo de Resolução);
    • Elaboração de um programa estratégico, a debater no Parlamento, com as principais linhas orientadoras da atuação da banca pública. Este programa deve ter em conta a prioridade do país, que é a sua reconversão produtiva, de um modelo financeirizado e dependente para o investimento em mobilidade, eficiência energética, e indústria ambientalmente sustentável.
  • Reforço e alargamento da base da contribuição das instituições financeiras.

  • Proteger os clientes da banca

    As sucessivas alterações de taxas, de regras de acesso e de padrões contratuais têm vindo a prejudicar os depositantes e clientes dos bancos. Para o Bloco, é essencial preservar as regras dos serviços mínimos universais, do direito a usar uma conta bancária, a receber informação fidedigna e compreensível. Pela mesma razão, é fundamental proteger os clientes de todos os abusos e, no caso dos lesados do BES e do Banif, garantir que são ressarcidos dos valores a que têm legalmente direito, nomeadamente com a agilização dos processos burocráticos junto das instituições de supervisão e do apoio às situações económicas e sociais mais dramáticas. 

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