A crise mostrou as lacunas profundas do nosso sistema de proteção social. Houve centenas de milhares de pessoas em Portugal que, tendo perdido o seu emprego, ficaram sem acesso a qualquer proteção social. Para isso contribuem formas precárias de emprego que não permitem aceder às prestações de desemprego, designadamente por inexistência do prazo de garantia exigido, o enorme volume de trabalho informal (sem proteção social), a debilidade da proteção dos trabalhadores independentes e o facto de os subsídios de desemprego terem sofrido, desde 2010, alterações na sua cobertura e valor.
Esta realidade obrigou a que se criassem três tipos de medidas temporárias. Novas prestações sociais, limitadas no tempo, como o “apoio extraordinário para os trabalhadores independentes”. Novas regras, também temporárias, para acesso às prestações existentes, como a diminuição do prazo de garantia do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego e a prorrogação da sua atribuição. A necessidade destas medidas deve obrigar a esquerda a repensar profundamente todos os vazios de proteção social do nosso sistema.
Uma parte significativa dos trabalhadores desempregados não tem proteção, a cobertura do subsídio social de desemprego é muito escassa (cerca de 2% do número total de desempregados), continuamos a ter prestações de desemprego abaixo do limiar de pobreza, o valor mínimo do subsídio de desemprego mantém-se abaixo do limiar de pobreza, o valor mínimo do subsídio social de desemprego (não contributivo) muitíssimo abaixo do limiar de pobreza.
Não admira, por isso, que os desempregados sejam o grupo mais exposto à pobreza em Portugal e o único que diverge da tendência nacional de redução do risco de pobreza nas últimas décadas. Entre 2005 e 2018, a taxa de risco de pobreza dos desempregados já tivera um aumento de cinquenta por cento (de 28% para 42%). Ou seja, o problema já vinha de trás. Há cerca de uma década, o Governo PS (em 2010) fez alterações estruturais com enorme impacto no subsídio de desemprego: o cálculo do valor mínimo e máximo deixou de ter como referência o Salário Mínimo Nacional, além de se terem alterado os períodos de concessão. A Direita, a partir de 2012, acentuou este caminho. A consequência foi uma redução do tempo de proteção para os trabalhadores, particularmente aqueles com menores carreiras contributivas. O mesmo aconteceu com o subsídio social de desemprego, cujo acesso foi dificultado por uma condição de recursos que exclui a maioria.
Hoje mantém-se o triplo recuo ocorrido no tempo da troika: corte no valor da prestação, na duração do período de concessão e na condição de recursos do subsídio social. Nenhuma destas medidas foi revertida. O único corte que foi eliminado na anterior legislatura 2015-2019 foi o de 10% no valor da prestação ao fim de 180 dias, além de se ter posto fim, por proposta do Bloco, às humilhantes e inúteis “apresentações quinzenais”. Na legislatura 2019-2021, houve uma majoração do valor mínimo do subsídio de desemprego.
À debilidade do subsídio de desemprego soma-se uma degradação das prestações de combate à pobreza. O Rendimento Social de Inserção tem acolhido muito poucas vítimas desta crise: em 2020, aumentou apenas 1,3% o seu universo de beneficiários. Os desempregados e os jovens adultos, o grupo social mais vulnerável à pobreza em Portugal, não têm no RSI uma medida capaz de lhes responder. Além disso, os valores do RSI ficam muito aquém do limiar da pobreza: em 2021, a prestação média de RSI foi de 119,96 euros por beneficiário, por mês. Desde 2010, as alterações restritivas nas condições de acesso e na definição dos agregados familiares ditaram uma degradação da prestação. Os elementos diferenciadores da medida, assentes num compromisso do Estado com um plano de inclusão para cada pessoa, desvaneceram. A tudo, acresce o estigma social lançado sobre a medida.
Também os trabalhadores independentes são praticamente excluídos da proteção social quando ficam sem atividade. A dimensão do problema ficou clara quando mais de 200 mil trabalhadores requereram o apoio extraordinário para trabalhadores independentes durante a pandemia.
A transformação do sistema de proteção social não se resolve apenas com medidas temporárias, mas exige alterações de fundo na regulação e proteção do trabalho e no desenho das prestações de desemprego. Ninguém sem emprego ou sem atividade e que não tenha rendimentos deve ficar desprotegido. Nenhuma pessoa que trabalhou e descontou deve ter um apoio abaixo do limiar de pobreza. É preciso alterações profundas no RSI, é preciso alterar as prestações de desemprego, revertendo os cortes no valor e na duração, é preciso mudar o subsídio social de desemprego e criar novos patamares de proteção social que cubram todos os casos que não estão abrangidos pelas prestações de desemprego e pelo RSI, o que implica uma prestação social nova, de largo espectro, permanente, e com um fôlego diferente das que existem.
Metade das pessoas em Portugal já viveram, em algum momento da sua vida, uma situação de pobreza. Portugal continua a ser um dos países da Europa com maior pobreza e com maiores níveis de desigualdade. A existência de 1,7 milhões de cidadãos e cidadãs (dos quais muitos são crianças e jovens) em situação de pobreza é um facto que ofende o país e que motiva a ação da esquerda. A UNICEF Portuguesa, no relatório “As crianças e a crise em Portugal” revela que 28,6% se encontravam, em 2011, em risco de pobreza e exclusão social. Em Portugal as estatísticas registam que ¼ da população se encontra num patamar de pobreza e, entre estes, predomina a população mais velha e reformada. Dentro desta realidade multiforme encontra-se também o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo. De acordo com os dados disponíveis, Portugal tinha, em 2020, 8209 pessoas nessa situação, mais mil do que em 2019. A pandemia agravou a situação e apesar da existência de uma Estratégia Nacional que foi reativada depois de ter sido congelada pelo PSD e pelo CDS, há um enorme trabalho a fazer. A erradicação da pobreza tornou-se uma urgência social.
O combate à pobreza não é apenas uma questão de “apoio aos pobres” , às crianças ou aos idosos, nem tampouco de políticas sociais, mas sim uma questão de distribuição primária de rendimento, de políticas orçamentais, económicas, de políticas de emprego, de educação, de saúde ou de habitação. Uma estratégia de erradicação da pobreza tem por isso que incidir sobre todas as escolhas que fazemos a todos os níveis.
Reforço do Rendimento Social de Inserção, aumentando já em 2022 o valor de referência do RSI e diminuição da diferença da capitação entre os membros do agregado. O valor de referência deve caminhar para o IAS e reforçar a componente de integração através do acompanhamento e da ação social e integrando-o, a prazo, no Rendimento Social de Cidadania;
Reforço das prestações de desemprego, designadamente: i) retomando o salário mínimo nacional como referência do valor mínimo do subsídio de desemprego contributivo (e não o IAS, que ainda por cima é inferior ao limiar de pobreza); ii) aumentando os períodos de concessão, voltando às regras de 2009; iii) tornando o valor do IAS (438,83€) o valor mínimo de referência do subsídio social de desemprego (atualmente é 80% do IAS no caso do trabalhador considerado isoladamente); mudar a condição de recursos do subsídio social de desemprego, tomando o IAS (e não 80% do IAS) por elemento do agregado o valor de referência para acesso ao subsídio social de desemprego e mudar a capitação dos membros do agregado;
Criação uma nova prestação social que unifique os apoios não contributivos. Numa primeira fase, este “Rendimento Social de Cidadania” deve ser capaz de cobrir os casos que não estão abrangidos pelas prestações de desemprego e pelo RSI, nomeadamente os que foram cobertos por apoios extraordinários (trabalhadores independentes, informais, trabalhadores com prazos de garantia inferiores a meio ano). Numa segunda fase, o Rendimento Social de Cidadania absorveria o RSI e o Subsídio Social de Desemprego (duas prestações não contributivas, isto é, financiadas pelo Orçamento do Estado), fundindo assim estes apoios numa nova prestação, com um nome menos estigmatizado e com um novo impulso. Ela funcionaria como uma prestação diferencial capaz de garantir que ninguém fica abaixo do limiar de pobreza;
Subordinação das novas políticas públicas à prévia avaliação no Parlamento do seu previsível impacto, positivo ou negativo, sobre a pobreza e a exclusão social. É instrumentalmente crucial que, para além de atacarmos as consequências sejamos capazes de prevenir as causas e que, para isso, as políticas setoriais – particularmente aquelas que objetivamente terão um potencial impacto sobre a pobreza – sejam aprovadas após uma prévia avaliação dos seus impactos na produção, manutenção ou agravamento da pobreza e da exclusão social;
Reforço da Estratégia Nacional de Integração das Pessoas Sem-abrigo. Entre outras medidas, deve haver um investimento substancial num programa nacional de “Housing First” (ou Casas Primeiro), através do qual, em articulação com os municípios, se concedam habitações sem impor condições prévias, como primeiro passo para o processo de reintegração. Em quatro anos, este programa deve dar resposta ao conjunto de situações identificadas. Deve também ser garantida a contratação de profissionais com formação especializada que acompanhem as pessoas, assegurando que o programa das “Casas Primeiro” tem capacidade de sucesso nos seus objetivos;
Criação de uma estratégia nacional para a erradicação da pobreza e exclusão social, garantindo uma ampla participação em todas as fases do processo.
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