Partilha

20. Um país feminista

As mulheres são exploradas na desigualdade salarial e no trabalho doméstico e oprimidas por várias violências de género. São também quem se levanta contra todas as desigualdades. Uma sociedade mais livre e mais justa tem de ser feminista!

Direitos sexuais e reprodutivos

14 anos após a aprovação da Lei n.º 16/2007, que descriminalizou o aborto a pedido da mulher e estabeleceu novos prazos para a exclusão de ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, é necessário olhar para a sua aplicação, para perceber as suas fragilidades e propor as alterações necessárias.

A objeção de consciência é hoje reconhecida como um entrave à aplicação da lei. A situação torna-se mais grave, por vezes inultrapassável, quando saímos dos grandes centros urbanos para territórios mais despovoados e com menor oferta de serviços de saúde, nomeadamente públicos. O Estado português tem obrigação legal de garantir que a objeção de consciência não funciona como uma barreira ao aborto legal, impedindo as mulheres de usufruir de um serviço ao qual têm direito, dando cumprimento ao estabelecido na lei (artigo 4, n.º 1), designadamente «assegurar que do exercício do direito de objeção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde não resulte inviabilidade de cumprimento dos prazos legais». Do mesmo modo, o período de reflexão não inferior a três dias a que a lei obriga é, não apenas um atestado de menoridade intelectual passado às mulheres, mas também um instrumento que dificulta o cumprimento dos prazos legais e, por isso, deve ser suprimido da lei. As dificuldades que enfrenta o Serviço Nacional de Saúde repercutem-se também na aplicação da lei do aborto, por isso entendemos ser necessário descentralizar o acesso a este procedimento, desafogando, por um lado, os hospitais e facilitando, por outro lado, o acesso ao cumprimento de um direito, não apenas às cidadãs nacionais, mas também às mulheres migrantes. Os centros de saúde e as unidades de saúde familiar podem ser parte desta resposta, nomeadamente no que ao aborto médico diz respeito. São instituições mais próximas das pessoas, o que permite desde logo esbater dificuldades – culturais e económicas – no acesso à saúde sexual e reprodutiva.

Em todas as crises, a situação das mulheres é um barómetro da situação social. A crise pandémica e socioeconómica que atravessamos nos últimos dois anos é disso exemplo. Com a crise foram mulheres quem sofreu o primeiro impacto do desemprego e da precariedade. As trabalhadoras informais, nomeadamente no setor das limpezas, perderam parte ou a totalidade dos seus rendimentos, numa situação agravada pela falta de proteção social. A carga do trabalho não-pago dos cuidados sobre as mulheres aumentou.  Nos serviços considerados essenciais, muitas mulheres da população mais pobre, mulheres racializadas, mulheres das comunidades imigrantes tiveram de continuar a trabalhar e a arriscar as suas vidas sem a devida compensação salarial e sem condições de habitação e transportes públicos.

A violência de género também se agravou. No estudo da Escola Nacional de Saúde Pública (VD@COVID19), 15% dos participantes reportaram que houve violência doméstica em sua casa e 34% das pessoas inquiridas que foram vítimas de violência doméstica declararam tratar-se de uma primeira agressão.

Erradicar a Violência Obstétrica

O problema: em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para o drama de “muitas mulheres [que] sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde”, afirmando que esse tratamento viola os “direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação”.

A violência obstétrica é uma realidade pela qual muitas mulheres passam sem sequer a identificar como uma violação dos seus direitos. No entanto, o isolamento, a prática de atos médicos sem consentimento informado, os abusos físicos, psicológicos e verbais, a negação de anestesia, de acompanhamento ou de respeito pelas escolhas da mulher no momento do parto são uma experiência comum.

Em 2015, a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto publicou um relatório sobre as “Experiências de Parto em Portugal” no qual 1468 mulheres (43% da amostra) afirmam não ter tido o parto que queriam. Estando em causa não a ocorrência de situações inesperadas, mas a “perda de controlo sobre o processo do parto”. Tudo devia começar com a prestação de todas as informações necessárias a uma decisão sobre o próprio parto, no entanto, 43,3% declaram que não receberam “informação sobre algumas das suas opções possíveis no trabalho de parto e parto” e 44% não foram consultadas sobre as intervenções às quais foram sujeitas.

Apesar de recentes alterações positivas, a lei está longe de se traduzir numa mudança efetiva no combate à violência obstétrica. De tal modo que, em maio de 2021, uma ampla maioria na Assembleia da República aprovou uma recomendação ao Governo para a eliminação de práticas de violência obstétrica como a manobra de Kristeller, a episiotomia de rotina, e o escandalosamente chamado “ponto do marido”.

Impõe-se uma chamada de atenção particular para a episiotomia (corte no períneo, área muscular entre a vagina e o ânus, para ampliar o canal), que tem sido desaconselhada pela OMS como prática de rotina. Dados do Euro-Peristat e do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, apontam para uma taxa de episiotomia em Portugal acima dos 70%. Entretanto, o Consórcio Português de Dados Obstétricos, composto por serviços de 13 hospitais, registou uma taxa de episiotomia na ordem dos 25% em partos vaginais (próxima da preconizada a nível das recomendações internacionais) e 63% em partos instrumentados. Sendo de salientar que faltam dados mais globais e mais completos sobre o parto e o cumprimento dos direitos na gravidez e no parto.

Ano após ano, os números da violência contra as mulheres continuam a envergonhar o país. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI 2021) mais recente, a violência doméstica contra cônjuge ou situação análoga, apesar de ter diminuído em 2020 face ao ano anterior, continuou a ser o crime mais participado em Portugal, representando 85% das mais de 27 mil queixas por violência doméstica. Do total de vítimas de violência doméstica, 75% são mulheres e raparigas, enquanto 81% dos denunciados são homens. A estes registos faltam todos os casos que ficaram em silêncio.

A marca de género na violência sobressai também nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, conforme demonstra o RASI 2021. Nos crimes de violação, 99% dos arguidos são homens e 92% das vítimas são mulheres. Nos casos de abuso sexual de menores, 93% dos arguidos são homens e as suas vítimas correspondem a 80% de raparigas e 23% de rapazes.

Acresce que as mulheres mais pobres, as mulheres lésbicas, bissexuais e trans, as pessoas não-binárias, as pessoas racializadas e as pessoas com deficiência são alvo de múltiplas violências. Sendo de referir a situação particularmente preocupante das mulheres trans. O Trans Murder Monitoring registou a nível mundial 350 pessoas trans assassinadas em 2019, 98% das quais do género feminino, 50% imigrantes.

Em Portugal, desde que foi criado o Observatório de Mulheres Assassinadas (UMAR) há registo de 569 mortes (2004-2020). Só em em 2020 registaram-se 35 mulheres assassinadas, tendo sido 19 vítimas de femicídio em contexto de relações de intimidade e 16 mulheres assassinadas noutros contextos.

Tabela 13 / Mulheres assassinadas entre 2004 e 2020

Gráfico 23 / Femicídios nas relações de intimidade entre 2004 e 2020

Fonte: Relatório Anual 2020 do Observatório de Mulheres Assassinadas – UMAR

A desigualdade salarial entre homens e mulheres é outra das consequências da sociedade patriarcal. Em 2021, o Dia Europeu da Igualdade Salarial foi comemorado a 10 de novembro, data a partir da qual, simbolicamente, as mulheres deixaram de ser pagas, devido à diferença salarial. É como se trabalhassem gratuitamente o resto do ano.

É um facto que as mulheres estão mais representadas em profissões com salários mais baixos, mas isso está bem longe de explicar 85% da diferença salarial. Essa desigualdade faz-se sentir de forma mais aguda entre as mais velhas: das 162 mil pessoas abrangidas pelo complemento solidário para idosos em 2021, 70% são mulheres.

A aprovação da lei da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual ficou ainda longe do desejável. É necessário avaliar o impacto de uma lei cuja aplicação se limitava nos primeiros três anos às empresas com mais de 250 trabalhadores. E revê-la no sentido da disponibilização de mais informação, abrangência de todos os empregadores, prazos mais apertados para as empresas resolverem a situação, reforço da fiscalização e das penalizações por incumprimento da igualdade salarial.

Tabela 14 / Diferença salarial entre homens e mulheres em regime de trabalho a tempo inteiro, 2019

Fonte: Projeto “Os benefícios sociais e económicos da igualdade salarial entre mulheres e homens”, ISEG/CEMAPRE/CESIS 2021

Gráfico 24 / Diferença salarial média entre homens e mulheres

Fonte: CIG GEP/MTSS/Quadro de Pessoal | Eurostat

Além de serem quem tem os salários mais baixos, as mulheres têm em média 4 horas e 17 minutos de trabalho não pago relacionado com a família, ao passo que os homens cumprem em média apenas 2h37. Somando a média das horas despendidas no trabalho doméstico e nas tarefas de cuidado, a jornada diária média de trabalho de uma mulher é de 12h23.

Acresce que, apesar de a lei proteger quem falta ao trabalho para, por exemplo, prestar assistência à família, a desigualdade persiste por via do salário indireto. As mulheres faltam mais e trabalham menos para além do horário, não apenas porque tradicionalmente as tarefas de assistência a ascendentes e descendentes são sua responsabilidade, mas também porque 85% das famílias monoparentais são femininas, e isso reflete-se no seu salário real.

Gráfico 25 / Percentagem de  mulheres que recebem o salário mínimo nacional

Fonte: Inquérito aos Ganhos e à Duração do Trabalho abril de 2019 – MTSSS

A Greve Feminista Internacional introduziu no debate político a ideia de “greve social”, que coloca no centro a vida concreta das mulheres, diferenciando “trabalho” de “emprego” e estendendo-o aos trabalhos invisibilizados dos cuidados e domésticos. Uma reorganização social dos cuidados, que tem de passar pela promoção da partilha, em termos de género, dos cuidados informais, combatendo a divisão sexual que existe. Passa ainda pela formalização de cuidados, através de um Serviço Nacional de Cuidados, como o Bloco propõe. 

As profissões e atividades exercidas maioritariamente por mulheres são as mais desvalorizadas salarial e socialmente. É necessário olhar para o trabalho doméstico e de cuidados para se perceber a sobrecarga do quotidiano das mulheres. Se o trabalho não reconhecido e desvalorizado das mulheres na esfera privada colmata as lacunas do Estado Social, deve considerar-se esse trabalho na definição das regras das pensões, sob pena de ser perpetuado o ciclo de precariedade e pobreza femininas.

Gráfico 26 / A dupla jornada das mulheres

Fonte: Heloísa Perista, Ana Cardoso, Ana Brázia, Manuel Abrantes, Pedro Perista. Os usos do tempo de homens e de mulheres em portugal. 2016. Lisboa: CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social. Disponível em: http://cite.gov.pt/asstscite/downloads/publics/INUT_livro_digital.pdf

Agir sobre a pobreza menstrual

As mulheres e as pessoas trans e não binárias são mais vulneráveis à pobreza e exclusão social. A falta de acesso a bens de necessidade básica como os produtos de saúde menstrual concorrem para o aprofundamento dessa exclusão. O acesso a produtos de saúde menstrual é muitas vezes dificultado pelo preço e também pela vergonha de falar abertamente sobre menstruação, o que tem consequências psicológicas, sociais e de saúde.

As propostas do Bloco:

  • Reforço da regra da paridade na constituição de listas para a Assembleia da República (50%);

  • Alargamento da fiscalização da desigualdade salarial a todas as entidades empregadoras e criar sanções para as empresas que não corrigirem a situação;

  • Modificação da natureza do crime de violação para crime público;

  • Tipificação do crime de assédio sexual, em conformidade com a Convenção de Istambul;

  • Reforço do apoio às vítimas no decurso dos processos judiciais, nomeadamente através de ordens de interdição, de emergência, de restrição ou de proteção, de modo a afastar os agressores e não as vítimas;

  • Reforço do apoio às vítimas de violência doméstica, nomeadamente através do aprofundamento de direitos no trabalho, acesso à habitação, educação e segurança social;

  • Reconhecimento de que as crianças que são testemunhas de violência são profundamente afetadas por ela, o que impõe a avaliação da atribuição do estatuto de vítima e a obrigatoriedade de articulação entre a jurisdição criminal e a jurisdição de família e menores, incluindo a criação de tribunais com competência mista para esse efeito.

  • Combate à violência obstétrica através da criação de legislação mais eficaz e de uma Comissão Nacional para a Promoção do Parto Respeitado;

  • Reforço do acesso a produtos de recolha menstrual através da sua distribuição gratuita em centros de saúde e em escolas;

  • Criação de uma rede de cuidados contraceptivos nas escolas, em parceria com associações e centros de saúde, incluindo a distribuição de preservativos e produtos de saúde menstrual, e prosseguindo a consagração de um espaço curricular de educação sexual;

  • Criação da Comissão Nacional para os Direitos na Gravidez e no Parto, que assegure a produção de relatórios com dados oficiais e de campanhas de informação contra a violência obstétrica e pelos direitos na gravidez e no parto;

  • Promoção da educação sexual, da formação de profissionais de saúde e do reforço do respeito pelo plano de nascimento;

  • Reforço da proibição de práticas médicas desnecessárias e/ou não consentidas, como a episiotomia de rotina, que são declaradas inadequadas por organizações internacionais;

  • Instalação de um ponto focal sobre IVG e planeamento familiar em cada agrupamento de centros de saúde, como forma de aumentar o acesso à informação;

  • Alteração à Lei n.º 16/2007, que descriminalizou o aborto a pedido da mulher, tendo como princípios orientadores:

    • O consenso internacional sobre prazos de exclusão de ilicitude da interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher e por razões de doença fetal;
    • As legislações que, desde 2007, têm sido aprovadas em diversos países, sustentadas nos direitos humanos e em princípios pró-escolha;
    • O princípio da igualdade no acesso à saúde, independentemente da nacionalidade e da zona do território em que residam as mulheres;
    • O fim da obrigatoriedade do período de reflexão;
    • A descentralização da prática do aborto médico, alargando-a para os centros de saúde e para as unidades de saúde familiar;
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